Fragmentos da obra
Ignóbil
Eu surgi em uma daquelas famílias antigas cujo nome já foi há muito esquecido. Não era mais que dois quilos e meio de carne, ossos, resquícios de sangue e placenta envoltos em um pequeno cobertor cor-de-rosa, liso de tão gasto, há gerações envolvendo recém-nascidos da família, quando a parteira do vilarejo, que também era a benzedeira e curandeira, com olhos que segundo a minha avó estavam tão vidrados que causavam vertigens, como se estivesse em um estado de torpor, bem longe desse mundo, com uma voz cavernosa que não parecia ser a sua voz de todo o dia, mas um eco vindo de uma espécie de abismo, um lugar primordial onde vivem presas as forças do caos, os deuses primitivos e todas as coisas sem limites, afirmou que eu, aquele pequeno ser recém-formado e modelado, tinha sido prometida e que meu destino estava entrelaçado ao libertador de caminhos.
Minha avó, com os pelos arrepiados e o calafrio típico de quem encontra uma dessas forças primordiais que não são dadas ao convívio humano, perguntou:
—E que é esse, mulher dos Deuses?
A parteira, parecendo voltar do transe, deu de ombros:
—Ah, isso já não sei.
Então, com apenas dois quilos e meio, eu já sustentava o peso de centenas de gerações que se sucederam e se perderam. O peso de um povo sem caminhos.