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Fragmentos

Conto ‘O FUNERAL DA PRISCA’

 

  Santas são todas as mulheres, minha mãe foi uma santa, por isso eu não matei você. Aquela ideia de prender o Ribombo, bem que eu lhe disse para deixá-lo solto, todos temos direito à liberdade e não é por ser um rato que devia ficar preso.

   Bem tarde da noite, você não sabe que bonita estava, de vestido de brilho indo ao teatro, não fui junto porque tinha que alimentar o Ribombo.

   Cheguei depois. Magnífica a peça, nem tinha mais lugar, fiquei lá atrás, você sentada mais adiante, sabe de uma coisa? Eu nem pisquei quando o cortejo passou pelo palco carregando o caixão à luz de tochas e cantando a música da morte.

   Todos os que estavam na plateia me diziam que de amor também se morre e eu concordei. Saí antes de terminar a peça, comprei violetas na porta do teatro, pensei: - São para enfeitar o enterro de Prisca.

   O cortejo de sombras desceu do palco e passou pela plateia, acompanhei-o até a avenida, você sendo carregada, tão lindo o seu vestido luminoso. Tudo o que eu podia fazer era abraçá-la para lhe dizer adeus. E deixar seguir o cortejo transportando seu corpo.

   Bem que eu dizia, Prisca, um dia assistirei à peça de uma morte triste e você não acreditava. Quantas vezes segui você na rua, nem era morta ainda. Tão linda, mas me traía, e eu esperando. Espiei por detrás da coxia, a platéia assim de gente, decerto você foi muito mais amada para que viessem assistir ao seu enterro em trajes de gala, todos muito alegres e falantes.

   Alegres, eu disse. Porque vão assistir ao funeral de Prisca. E eu também acompanhei fazendo parte de um féretro à luz de tochas pela rua levando o seu corpo em flor. E acompanhei você mais uma vez quando dançou no palco, eu espiando pela coxia, estendi as mãos para que dançasse sobre elas, tão leve, o seu passo como se fosse voo. A verdade é que eu me sentia um pouco triste lembrando do Ribombo preso lá. Fazer o quê?

   Toda morte é uma estreia. Porque eu sou um poeta e canto. Como as suas mãos estão geladas e é certo que há o frio da morte em suas mãos, e para morte não há retorno. Eu não queria matá-la, mas você me traía e eu a matei. Tão lindo o canto e muito mais o rufar dos tambores, a luz mortiça, um cheiro estranho de incenso e flor. Bem que eu falei, Prisca, não vamos ao teatro hoje. Mas você insistiu. Não havia mais lugar na plateia de tanta gente, fomos para o primeiro balcão, eu e você.

   Não queria vê-la morta, eu sei que você me traía, mas nem por isto eu queria matá-la. Quantas vezes se mata no palco, quantas vezes se enfeitam de flores os cenários e as cortinas e todos ficam aplaudindo.

   Alguém perguntou quem morreu, quem o caixão está levando pelo palco à luz de tochas. E eu respondo quem morreu foi Prisca. Vesti a calça de palhaço e o chapéu de palhaço com as abas caídas, vermelho e preto e também as calças de listras, mais a camisa de um azul bem forte com botões prateados, pintei o rosto. Fui desenhando a boca, você não queria mais que eu a beijasse, não queria, eu sei que não queria. Pintei a boca de vermelho, um palhaço de boca bem vermelha e o nariz feito uma bola. E você achava lindo, gostava da minha boca de palhaço e a cara de palhaço como gostava.

   Eu me divertia muito, todos os dias eu deitava na cama vestido de palhaço, por que não troca de roupa, você perguntava e dormia comigo mesmo assim. Mas dormindo de chapéu, esse chapéu ridículo de abas caídas, nem vejo mais o teu rosto. Você dizia. E eu respondia que não era mesmo para ver.

   Amanhã fazer de conta que corremos pela sala, você na frente e eu atrás, dando voltas em torno da mesa, eu te alcançando e derrubando, fazer de conta que brincamos de agarrar, minhas mãos no seu pescoço lindo e eu apertando. Fazer de conta que eu vou te matar, fazer de conta que eu aperto e que você nem grita porque sufoco e aperto e aperto e você nem grita até morrer.

   Eu te mato com as minhas mãos de palhaço, apertando o pescoço, apertando o teu pescoço e você representando que morre em minhas mãos de palhaço.

   E o Ribombo ali, o rato estupefato assistindo a peça, imóvel e assustado, esfregando as patinhas, as patinhas em prece, imóvel e assustado, Ribombo, eu bem te disse para permanecer na gaiola, ratos não são boas companhias quando se morre.

   Agora o teatro está deserto e eu represento para uma plateia ausente.

   No camarim os seus vestidos, aquele cheiro bom que você tinha parecendo flor. Quantos vestidos, aquele tão bonito que era azul e virou cinza pelo toque mágico da morte. Rendas azuis ficando cinza e as plumas que eram rosa e eram brancas e também vermelhas. Todas as plumas cinza.

   Quando andava pela calçada você era a mais bonita, era assim como se deslizasse, os cabelos ao vento e a voz macia. Tão bonita que você era, mas me traía. Dormia durante as tardes no chão do palco e ele dormia ao seu lado. Quantas vezes se enrolaram na cortina e a cortina se fechava sobre vocês dois e era assim como se anunciasse a morte. Você nunca deveria ter se enrolado na cortina para se esconder. Porque, por muito havê-la procurado eu a encontrei um dia, você e o mágico do circo, que desapareceu em seguida, ele de fato nunca estivera ali.

   O cortejo segue devagar pela avenida, deve ser alguém muito importante que morreu, alguém falou. E parou para ver. Os cavalos transportando o carro fúnebre estão cobertos com mantas pretas de franjas prateadas e seguem devagar e cabisbaixos como se levassem um andor, e a banda atrás como se fosse festa, e o malabarista e o mágico que desapareceu em cada esquina. O mágico.

   Deve ser alguém muito importante que morreu. Tantas flores e coroas, e quanta lágrima vertida de olhos tristes de quem se viu de preto para acompanhar o enterro carregando Prisca. Caminham devagar os personagens, bailarinos e palhaços e o barítono e todos os tenores em canto silencioso e os atores de todas as peças e os cantores de todos os cantos e o povo da cidade inteira em procissão levando o seu corpo na mágica da morte. E o mágico. Você nem vê que eu sigo junto e digo adeus. Deixar você tão linda vestida de prateado e transformada em luar como se fosse mágica.

   Eu sigo junto e digo adeus.

   Para depois na volta soltar o Ribombo.

 

                                    FIM