Fragmentos
Terra Esquecida
O convite para a jornada veio quando o mundo ainda estava cinzento. Foi uma época difícil, repleta de necessidades que não podiam ser supridas. Ele tinha muito tempo sobrando, e eu não nada para fazer. Tudo começou meio sem jeito, um sem saber direito o que dizer para o outro. Afinal, nos conhecíamos por toda uma vida, sempre nos cruzávamos várias vezes durante o dia, mas éramos apenas conhecidos, daqueles que se cumprimentam e se falavam quando existe necessidade. Porém, quando estabelecemos o nosso objetivo comum, os assuntos começavam a brotar a partir dele, e dali fluíam, andavam, cresciam, viajavam assim como nós. Naquela primeira vez podíamos não ter ido muito longe em questão de distância, mas fomos muito além em questão de estabelecer uma conexão. E então ficou mais fácil. Depois de um tempo já era possível perceber a animação assim que surgia a oportunidade de partirmos. Com a experiência nossos passos se tornaram mais largos, e começamos a desbravar novos horizontes. Logo descobrimos que o mar era o nosso ambiente ideal, um gosto em comum. Sem que houvesse um acordo propriamente dito, estabelecemos que sempre estaríamos cercados de água salgada. Navegamos por anos, aprendendo tudo o que se tinha para aprender sobre viagem por mar. Enfrentamos tempestades, escapamos de naufragar várias vezes, fomos cercados por monstros marinhos e piratas sanguinários. Quando nada mais nos amedrontava, com nossa confiança e cumplicidade estabelecidas, ele surgiu com os mapas de tesouros. Alguns tinham instruções complicadas, que nos demandavam dias. Outros tinham instruções simples, mas que escondiam armadilhas mortais. Alguns baús de tesouro nos tornaram ricos, outros nos amaldiçoaram. Ainda houve aqueles que não encontramos, os que estavam vazios e os que eram apenas uma brincadeira de algum pirata entediado. Também salvamos tribos e povoados de pragas e bandidos, alguns por recompensas, outros sem querer. Por um tempo tivemos a ajuda de um vento mágico, o qual nunca víamos, mas que sempre nos soprava instruções e dicas valiosas, que salvavam nossas vidas – às vezes por pouquíssimo. E em todos os finais de aventura voltávamos exaustos, mas com um sorriso enorme de quem tinha conquistado algo único. Com o passar do tempo, não éramos mais tão desocupados. Ainda tínhamos nossas vidas individuais, e precisávamos lidar com elas. Porém, sempre conseguíamos um momento para mais uma aventura, mais uma jornada, mais uma descoberta, mais um mistério, mais um tesouro acumulado e mais um momento precioso dividido. Enriquecemos, ganhamos fama, nos tornamos lendas, fomos heróis, bandidos e divindades... e envelhecemos. Então, chegou o dia inevitável em que tudo teve um fim. Não foi abruptamente, mas também não foi planejado. As aventuras não tinham mais uma frequência, e também já não tinham mais a mesma empolgação, pois nunca estávamos focados como antigamente. E então, aquele mundo tornou-se para nós nossa Terra Esquecida. Nos anos que se passaram após deixarmos de ir para o mar, vez ou outra nos recordávamos de um acontecimento daquele lugar distante e sorríamos com a lembrança, pensando que tinha sido um tempo bom.
E realmente foi um tempo bom. Mesmo muito tempo depois de o mundo voltar a ser colorido. Talvez, fora exatamente isso que trouxe as cores e a luz de volta.
Por isso hoje, enquanto me escoro aqui na entrada da porta da nossa garagem e perco meu tempo olhando para aquele velho sofá desbotado, é como se eu voltasse naquele momento em que era só nos dois ali: eu – um menino magricela e emburrado que não entendia porque não tínhamos energia elétrica para ligar meu videogame – e você – o pai desempregado que não queria que o filho entendesse tão cedo o que era passar por uma crise financeira. Enquanto a mãe ficava o dia inteiro trabalhando muito para ganhar um pouco, você me levava para lugares incríveis sem que saíssemos do lugar. E essa volta ao passado desaba sobre mim com a esmagadora realidade de que agora em diante não haverá mais nós dois... e nem nós três.
Ela não tem nem um ano completo ainda, mas eu daria tudo o que conquistamos em anos para que as três gerações pudessem ter pelo menos uma viagem juntos para a Terra Esquecida, para que ela ter ao menos uma lembrança tão preciosa como as que eu tenho. De agora em diante, teremos que construir uma Nova Terra Esquecida para dividirmos nossos momentos. Entretanto, espero que onde ele estiver, em que mundo desconhecido ele esteja navegando, possa ser nosso sopro mágico, aquele que vai continuar nos guiando, sempre nos lembrando de que Terras Esquecidas existem porque nós existimos e estivemos juntos nelas. E que o mundo pode ser um lugar melhor se nós quisermos que ele seja.
Conto publicado na Coletânea Crônicas das Terras Esquecidas, em 2017.