Fragmentos da obra
SIMPLES
Joema Carvalho
Não me peça certeza. O que mais sei é que tudo depende ou não sei.
Para se dominar um assunto, apenas um doutor. O que consegui com o meu doutorado foi uma reticência. Uma porta aberta para um tema infinito, de onde absorvi apenas parte de um resumo.
Quando eu era adolescente eu tinha convicções fortes. Certezas concretas do que o que eu estava falando eram fatos inquestionáveis. Não entendia como que para algumas pessoas o que eu dizia não era óbvio.
O tempo passa para todos. É marcado através daquilo que amamos. No meu baú da eternidade, levo meus jardins e meus cachorros, as frutas da infância, os filhos que pari ao longo do meu processo.
Não me peça certeza. Assim como uma árvore que cresceu nos glaciares, moldei-me à instabilidade do ambiente. A inconstância guiou minha razão. Meu treino atual é não pensar.
Todas as vezes que pensei demais, estraguei o que deveria ter sido. Deixei de usufruir o que a vida me oferecia de forma espontânea. Pensar nos colocou acima da cadeia trófica: seres sem predador natural. A genética está se depreciando. O clima está mudando.
Tentei livrar-me do possessivo verbal e cai no imperativo. Coloquei poesia na frase para manter simples a minha liberdade. Procurei desviar das armadilhas linguísticas, incrustadas no dia a dia, as quais ditam as regras do compasso.
Sigo pelos vãos junto às brechas que se abrem em muros de madeira. Os carvalhos fazem acontecer as conexões entre as estrelas e o brilho das lavas de um vulcão em plena erupção. Nenhum deles pede licença.
A certeza perde o sentido quando o sol nasce por trás das nuvens de um dia chuvoso. Quando o eclipse solar trás noite onde se esperava dia. O caminho estável é a mudança.
A dança das mutações engloba diversas escalas. Não resiste em usar bemóis e sustenidos. As síncopes são uma tortura para quem abusa das colcheias, em divisões máximas, no seu existir de 1/8 de uma semibreve, metade de uma semínima; fusas e semifusas. O bem temperado aglutina os sabores em um prato único.
Soltar faz parte do treino. Deciduar-me até o chão. Entregar-me a queda e ao movimento do vento. Não saber para onde estou sendo levada neste movimento. Saboreá-lo.
Irei decompor-me junto dos demais. Irei desintegrar-me. Minhas moléculas serão livres, novamente, para tomarem outros rumos. Farão a sua escolha.
Poderei brotar. Da mesma forma, deixarei de ser. Saio de cena para outra parte dar continuidade a outro processo.
Não me peça certezas. Não sei conversar desta forma. Ficarei sem respostas, como se minha existência não tivesse significado. Sentir-me-ia presa a uma parede, em um tribunal de inquisição.
Pergunte se quero caminhar. Fazer uma trilha no meio de um ambiente natural. Parar para observar o precipício no alto de uma montanha. Ver a queda de uma cachoeira. Terá o melhor de mim. O meu silêncio e satisfação.
A TESOURA DE PODA E A ROCA
Joema Carvalho
Algum mistério há em uma roca, nos trabalhos manuais. O que está oculto caminha no sentido do jardim, guiado pela tesoura de poda que no Tempo e O Vento, também fazia os partos.
Estes objetos conectam espíritos unidos por sangue. Gens em espiral do tempo trafegam pelo nosso sagrado. Registra-nos com características de nossas antepassadas.
Ervas de cheiro que seguem de casa em casa, como se fossem uma forma de benção que entrega proteção a quem recebe.
No ponto cruz, desenhos e texturas compõem uma colcha que dura décadas. Depois de anos, a admiração e o encantamento segura aquele pedaço de pano. Ativa o tato e para pôr um tempo. Sente o toque, o movimento dos dedos que envolve aquele trabalho. Tentativa de entender como fora feito. Busca de como uma história ficou marcada no caminho daqueles pontos unidos por nossas ancestrais.
Os trabalhos seguem através das gerações como se fossem cordões umbilicais, unindo netas e avós em uma mesma sentença.
Pé da rosa bordô, textura de seda e sombra negra nas pétalas da Dama-da-Noite, no seu galho, a trama dos trabalhos manuais. Espinhos que sangram as dores das mudas transferidas pelo tempo. As flores, as dádivas da beleza e dos aromas entre as gerações, poder da cura. No seu cálice o carrossel de uma mandala que nos leva para longe. Os brotos desta flor estão espalhados em algum canto da alma, no centro do corpo cardíaco, a eterna busca dos seus rebentos. Quando menos se espera, expande-se nos novelos que escorregam pelo chão, próximos das nossas raízes e brotam.
O BRILHO DA COLUNA DOS CRISTAIS DE QUARTZO
Corre o rio submerso nas veias de um corpo maior. Logo a frente desagua naquele entorno. Escava o relevo gasto, na matemática do tempo em construção e destruição onde somos pedras rolantes, sedimentares, sob algo denso.
As rochas nos dizem que o ponto de partida é compacto. Com o tempo, as intempéries nos fazem voar através do vento. Depositamo-nos em platôs baixos. Outro corpo, fluido, bacia de sedimentação, banhado. Quando se permite buritis e os espinhos dos branquilhos e maricás, as flores das eritrinas, caxeta e o canto das migratórias nos meandros das conexões vivas, guanandis.
Abaixo das nascentes, espeleotemas, condicionados ao gotejamento das paredes ocultas, à sua química e calor. A água desce pela fenda que vem de cima ou emerge debaixo do que já era submerso. Na razão da tensão gera uma gota. Precipita brilhos e cristais sob o sal da terra. A água se esvai. Do encontro dos extremos, uma coluna de quartzo que brilha depois que desgasta. Torre preciosa.
Deus e deusas sussurram o mistério, no ouvido dos que estão atentos aos sons do alargamento das fendas, cavernas. Um vazio concreto abaixo dos nossos sentidos. No escuro do centro da terra, nichos que se formam. Cores do feixe de luz que penetra por galerias. Solo laranja, mesclado com rosa onde o marrom se esconde junto do vermelho e deixa de ser visível.
A água cristalina do rio submerso, imerge com o movimento do período das águas. Turva e filtra o que é necessário, verde esmeralda, longe dos nossos olhos.
Engolidos no cálice de um cogumelo, passamos e saímos sobre o casco da tartaruga anciã. Compactados pela falta de controle ou excesso, da marcação das unidades: tempo e espaço.
A proporção nossa é imperceptível. A fenda aberta forma um coração. Nos destroços encontra-se o conforto. A harmonia da criação. Equilíbrio. A síntese do incerto em fractais.
Textos publicados na minha coluna semanal no FACETUBES.