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Fragmentos

A Coisa

 

            O tubo se ajustou no centro da esfera e a coisa se espalhou no interior. Proliferou. Fragmentou-se. Fixo no alto o tubo iniciou a descida. Inexoravelmente. Atravessou o espaço com exata precisão obedecendo à contagem regressiva. Sem falhas. Sem paradas.

            Limitada na área da figura projetada, a coisa começou a expandir-se em todas as direções. Nenhum sinal de vida deveria restar. Nada. Absolutamente nada. Tudo seria absorvido. Sem negligência. Automaticamente.

            Antes a pedra marcou etapas: toscas, primárias, polidas, facetadas, resistentes. Em outro nível: mitológicas, racionais, metafísicas, empíricas, dialéticas. Apesar das convulsões provocadas pelo ser pensante, a pedra teve seus momentos de beleza, beleza efêmera perdida no tempo.

            Chegado era o fim. A esponja caiu sobre a coisa, absorveu-a num gole seco, descompassado. Parou. Os canais indicavam outro registro: o registro da memória histórica, porque a máquina não deixava nada sem registro. O tubo distribuidor, encaixado dentro do tubo grosso, acelerou o movimento e procedeu à retomada. A coisa líquida foi devolvida em espessas gotas para o ponto programado pelas fórmulas básicas, sem qualquer indício de solução de continuidade. No tempo determinado todos os canais se ajustaram no sentido da verticalidade.

            A esfera central desgovernou-se: girou aloucada. Sofreu várias deslocações e mutações. Descontrolou-se. Quase perdeu o equilíbrio.

            Cumprida a primeira parte o tubo retornou. Então o inadmissível aconteceu: ao penetrar no final da fase norte a máquina balançou. Estava entupida. Algum elemento da coisa captada pelos sugadores laterais ficara retido na engrenagem e alterara o processamento de dados.

            A coisa desconjuntou-se ao impacto da retomada. A máquina se movimentou em direção ao recurso da emergência: expeliu os ganchos retificadores indicados pelas setas vermelhas. Tarde demais. A esfera, agora solta no espaço, girou no próprio eixo e continuou marcando: rotação e translação. Sem parar. Foi quando o tubo se ajustou no centro da esfera e desceu acelerado para realizar a manobra de retorno. Sem resultado. Ponto morto. O mecanismo emperrou.

            O oxigênio retido se desprendeu e envolveu a bola. E começaram as mutações interiores e exteriores. A bola girava. O hemisfério glacial ainda encoberto. Quando o calor voltou a neve polar dissolveu-se. Debaixo daquela camada branca um embrião se arrastou vagarosamente. No encalço dele: outros.

(Cadernos do espanto: contos do ser, do não-ser, do vir-a-ser. Curitiba: Quem de Direito, 2001)