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Fragmentos

O QUE ME PERTENCE

 

O que é maior que eu

faz parte de mim.

A chuva cabe no mar,

a areia no deserto. Sempre foi assim.

 

O que é maior que eu

abraço feito fosse Deus.

As coisas pequenas vazam.

Choro por elas, uma noite talvez.

 

No outro dia

sol clareia a alma.

Descubro o que é meu

 

para sempre. Os sonhos, as lembranças.

Nossos passos calmos na areia.

O riso dos meus filhos, isto me pertence.

 

O SAL DAS ROSAS

 

Leito de um rio de sal.

Creste em mim

o desnecessário.

 

Apodreço em rosas.

Rio sem foz.

Lua duplo espelho

no coração das águas.

 

Lembranças,

esperanças.

Naufragam abraçadas

no involuntário rio

onde acordo.

 

KAMIKAZES

 

Doze kamikazes

arrastam a delicada açucena.

 

Doze kamikazes.

As lágrimas descem

feitos fontes.

 

Nenhuma música

de anjos sonoros,

nenhuma.

 

Nas nuvens que passeiam,

exausto de tédio, atira longe

o grão da maldade – o dragão da terra.

 

TRANSPARÊNCIA

 

No instante do milagre

Segredos descem penhascos,

Espelhos, memórias, casas.

 

Trechos da vida à beira da ruína

Todos guardam para si.

 

Ninguém é transparente feito água Ouro Fino.

(Retirados da obra O Sal das Rosas, 2006).

 

INSÔNIA

Este é o século da nossa insônia

Mentes plugadas em telas isonômicas

Longe dos mitos e da cosmogonia

Dopados de “soma” e monotonia

 

Este é o século lavado à amônia

Escravos cardíacos da luz de néon

Escravos maníacos dos mantras

Escravos agônicos do abutre Mamon

 

E havia esperança no pássaro

Havia luz nas colmeias tardias

Havia ar nas barricadas de Paris

Havia armar-te. Havia amar-te... Havia.

 

Bárbara Lia in Respirar (2014)

 

DANS I'AIR

p/Arthur Rimbaud

      Tínhamos a mesma idade

Quando vimos o mar

Este mistério de impaciência

— Rimbaud e eu —

 

Por isto

Pisamos telhados

Ao invés de chão

 

Por isto

Machucamos nossos amores

Com nossas próprias mãos

 

      Por isto

As velas acabam na madrugada

Antes que o poema acabe

 

— Por isto, tão pouco a vida para tanta

voracidade

 

 

DIMENSÃO ANGÚSTIA

Na dimensão angústia não cabe o sabor felicidade

Dança de folhas vivas - balé de sombras na janela

Som de sinos dos ventos a invadir veias – letargia

Carpe diem Sinatra rosa quartzo chantilly no lábio

O doce macio flutuante rascante (nuvem na veia)

Na dimensão angústia olhar degela - piche fétido

Negra lágrima rasga a pele açucarada de perdas

“Perder é uma arte”, diz Bishop – poetas mentem!

Raça enganosa a esculpir torpes desvios para o fim

Diz para mim que água eles bebem? De que fonte?

Diz em que lugar penduram seus corações de feltro?

Onde os poetas leem suas doutrinas embaralhadas?

O que os leva ao rito estoico? A propalar belezas?

Na dimensão angústia nada sobrevive, e eles seguem

Pintando muros bradando versos tecendo a sangue

E o mundo vai virar escárnio e vai virar inferno...

Ainda assim eles estarão lá a bradar: em algum lugar

Em algum lugar eles viram um pássaro raro e único

Em algum lugar eles encontraram a nascente do céu

Em algum lugar um homem era feliz, além da dor -

Atrás do muro da vergonha. As formigas cantam

As borboletas governam e o poeta insiste, abissal

Reinventa Deus sem cerimônia e grita e grita e grita

Na dimensão angústia alguém corta sua garganta

No dia seguinte o pai diz à filha que é permitido

Na casa em frente o velho abandonado caminha

As paredes rugem dor milenar a gritar a morte

O velho está morto e não sabe e caminha e sorri

Na cadeira corpo morto emite gases ele não sabe

Que os mortos seguem mortos na sala vendo TV

Nada cessa na dimensão angústia, desmorona tudo

Só o poeta segue a tecer haicais e versos brancos

Milhares de pílulas de otimismo e doce paisagem

A dimensão angústia clama um verso purulento

Um verso ao menos que exale o cenário cruel

Um verso que diga que o mundo apodreceu há dias

Enquanto um poeta dizia da luz clara de Maria

Ou da onda azul que morreu aos pés da santa

Ou daquela tarde em que foi feliz em Biarritz

Alguma coisa qualquer que lembra ananás e flor

Esta epopeia insana: viver no mundo das matinês

Technicolor estupendo - sorriso de Marilyn Monroe -

Vendo um filme antigo na tela e o mundo lá fora

Dimensão angústia que – dia a dia – deteriora

 

***

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

 

O ano da morte de Ricardo Reis

Não cante o desprezo dos deuses, Ricardo

Não colha as flores mortas ao lado do Tejo

Os fardos humanos são apenas isto — Fardos

E os beijos sensuais são apenas isto — Beijos

 

Sou toda verão na alcova, acesa, à tua espera

Estonteante mulher que levas a ver as flores

Enquanto os pássaros trinam alto — Neera!

Nada nos falta, mas, em ti brotam mil dores

 

Quando a morte te buscar, aquela que conheces

Voltarei aos prados colhendo as flores vivas

Tocarei a pele do planeta murmurando preces

 

Banquetearei na relva, as flores como convivas

Dói, Ricardo, saber que todos os campos serão meus

Ainda orvalhados de lágrimas dos belos olhos teus

 

***

ELA E A TELA

A TELA É ELA

 

Pies, para que los quiero si tengo alas para volar.

(Frida Kahlo)

Em uma mulher livre

Sobrancelhas são gaivotas

E sua roupa tem a cor do vinho

De um Banquete inesquecível

Rastros do Amor de Diotima

 

Em uma mulher livre

Uma nuvem pequena

Tem o mesmo peso

De um mar rancoroso

Debruado escuro

Contorcendo dor

Que pode ser do corpo

Ou do espírito

 

Em uma mulher livre

A agonia líquida

Escorre

Percorre

E sempre morre

Nos pés do ontem

 

Em uma mulher livre

Ninguém penetra

Sem saber a senha

E só sabe a senha

Quem penetra o círculo

O círculo de fogo

De quem já viveu em dobro

Amou em dobro

Sangrou retalhos de nãos

E costurou o coração

Com a mão esquerda

Enquanto a mão direita

Estancava o sangue

 

Em uma mulher livre

O olhar sempre é triste

Talvez por trazer a certeza

De que uma mulher livre

É coisa que quase não existe

 

***

Fragmento do romance "As filhas de Manuela"

— Diga a Manuela que eu a amo!

A brisa do mar trouxe a voz angustiada, o pedido. O Forte estava vazio. No pátio interno as paredes brancas suspensas ao meu redor refletiam o passado. Na mente, a imagem de um homem vestido de branco com o uniforme da Armada Nacional. Um sussurro e depois a queda do moço em câmara lenta, em meio à fumaça do meu imaginário. O vento passava acima da Fortaleza Nossa Senhora dos Prazeres. Ali dentro a brisa solidificou a força daquele pedido. Uma imagem que valsou ao meu redor e sacudiu meu vestido leve. O casal ao meu lado naquele passeio já adentrara o interior da carceragem do Forte. Eu os segui, tocada ainda pela frase. O clima adensa-se naquele lugar onde homens foram encarcerados. Fico por uns minutos colhendo a dor dos prisioneiros – ouvindo o ranger de correntes, barulho de latas batendo no chão, odor forte de marinheiros. O casal olha para meu rosto petrificado. A mulher se preocupa comigo.

— Tudo bem, Morena?

Esboço um sorriso para não demonstrar que uma parede ergueu-se e as dimensões foram varridas naquela tarde. Estou na antiga prisão no Forte Nossa Senhora dos Prazeres, na Ilha do Mel. Estou ouvindo o recado do homem que tombou em batalha. Manuela? Um nome guardado por quase dois séculos. Um recado que apago ao sair do monumento belo e as gaivotas trazem a certeza de que agora são livres todos os homens. Ou, ao menos, devem ser livres. Não há mais navios negreiros, nem batalhas. A Fortaleza marca o passado e proclama a era de mares abertos. Ao menos aqui perto. Longe, os piratas seguem a saquear. Somália é um nome que lembra piratas modernos. Aqui tudo está deserto. Nenhum soldado a vigiar os canhões. Uma nuvem imensa passa acima com pressa. Hora de voltar para a pousada e comer aquele peixe maravilhoso com uma salada leve. Sei que hoje vou dormir sonhando com um homem que, antes de tombar para sempre, grava no tempo um recado para quem ama. Hora de lembrar que houve outro tempo onde o amor imprimia esta urgência de rastilho de pólvora, explosões, naufrágios, lenços brancos, fragatas despedaçadas, mulheres que esperaram, em vão, pelos seus amantes. ***